Contra a "servitude volontaire"
São Julião da Ericeira, em 3 de Agosto de 2002
Exº Senhor Professor Doutor J...:
Tendo recebido, no meu primeiro dia de férias, a carta de Vª Exª, e superando a tentação de silêncio que me assolou, para evitar o inevitável processo de emotiva réplica que agora desencadeio, cumpre-me observar o seguinte:
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A tal coisa que circula na Internet dura há vários anos (desde 1998) e não consta que tenha sido lançada depois da recente derrota eleitoral dos socialistas. As afirmações nela constantes apenas constituem peças de um curriculum livremente comentado que faz parte da minha soberania pessoal e me é permitido pela liberdade dos actuais meios tecnológicos e pelo regime de valores da Constituição que nos rege. E raros são os visitantes do “site” que percorrem a chateza das auto-contemplações carreirísticas, como o posso atestar pelas estatísticas das cerca de quinze mil consultas registadas... Talvez mais incisivos em nominalismo tenham sido alguns artigos de opinião já publicados e uma conferência que proferi no IPSD, dentro do normal exercício do direito de oposição ao poder estabelecido, nomeadamente pela reivindicação da avaliação dos avaliadores, para além da nomeação decretina.
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A eventual crueldade das minhas afirmações terá, talvez, a violência categorial da vítima e o azedume individualista do revoltado, mas, segundo a minha perspectiva, tais comentários traduzem as consequências observáveis pela ditadura dos factos, facilmente analisáveis a posteriori. Qualquer observador da actuação de grupos de pressão e de grupos de interesse, mesmo que não interesseiros, em torno da Universidade Portuguesa das últimas três décadas, detecta, sem dificuldade, um grupo Veiga Simão, onde o patronímico não é ofensa, mas evidência e até elogio ao dinamismo do inspirador. Da mesma forma, ligá-lo ao adjectivo socialista é simples adjectivação politológica que não significa acusação de falta de tolerância, mas mera análise de um complexo relacional, onde apenas faltam algumas pontas, passíveis de futura indiscrição, e que me não surpreenderão, quando for possível fotografar em profundidade os meandros do soarismo e os efeitos jogos de poder do fim do regime da Constituição de 1933 nas irmandades de hoje. Continua a ser um elogio dizer que, como já o escrevi e publiquei, que em Portugal, nas últimas três décadas, entre os ministros da educação, apenas sobressaem Veiga Simão e alguns meses de Sottomayor Cardia. Os outros não passam de reedições do primeiro, entre os José Reis e os Reis José da cepa torta que, aceitando o mito pombalista de uma reforma sem ratio studiorum, não percebem a efusão de sucessivos monstros sistémicos que, adquirindo a lógica própria da mediocracia, se transformaram num inferno que escapa às boas intenções do próprio criador. Essas tais criaturas quase ideológicas que se libertam dos criadores, onde a ideia dominante do there is no alternative constitui espaço aberto para os atavismos revolucionaristas ou reaccionaristas, esses sim os verdadeiros inimigos de uma autêntica reforma, que só o será se for revolucionária nos objectivos e conservadora nos valores. É o que tenho sofrido no terreno, ao longo destes 26 anos de professor que professa nas aulas e não nos gabinetes dos educacionólogos da 5 de Outubro, onde dominam os aureolados por certos doutoramentos de chouriço importado.
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Reconheço que sou marcado por aquela rusticidade que nunca se adaptará à sociedade da corte, e que tem a ilusão de querer ser de um só rosto e de um só parecer. Assumindo-me como radical contra a “servitude volontaire”, aprendi a dizer “não” à falta de autenticidade daqueles jogos de poder que nos obrigam a torcer para não quebrar. Aliás, apenas militei num grupo político-partidário entre 1983 e 1988, onde acedi aos lugares cimeiros depois de conquistar pela via eleitoral posições em assembleias de freguesia e concelhias, bem como em congressos. A política faz-se de baixo para cima, horizontalmente, e não pela via do verticalismo dos influentes. E sempre o fiz em nome de uma ideia “liberal”, resultante da soma do “liberdadeiro” com o “libertacionista”, de acordo com aquilo que considero a nossa tradição “azul e branca”, conforme a síntese da “santa liberdade” da traída Maria da Fonte.
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Considero assim que a razão de Estado não tem uma ética diferente da ética da convicção, a não ser para os que se julgam iluminados e como tal se excepcionam, ao invocarem, como regra de conduta, a mera ética da responsabilidade que, parecendo ter razão no curto prazo, a perde no médio e longo prazos, sendo portanto uma má moral e uma péssima política.
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Em termos estritamente pessoais, nada me move contra Vª Exª, de quem guardo a imagem de dialogante mestre coimbrão e de convicto patriota, e de quem quero recordar apenas as longas viagens que fizemos para a ..., esquecendo outros compreensíveis esquecimentos, nascidos da ingenuidade de quem pensou ter criado laços pessoais de confiança que ultrapassariam os habituais intermediários. Em termos de avaliação política, julgo poder fazer os juízos provindos das minhas crenças e das minhas informações, e, consequentemente, assumir as rupturas consideradas pertinentes. Mas nunca terão a importância de acederem sequer a uma nota de rodapé das histórias oficiosas. Peço apenas que não me qualifique subliminarmente de acordo com os fantasmas da sua primeira passagem pelo poder, dado que não pertenço nem nunca votei nos actuais gestores do poder governamental, situando-me em zonas bem mais heterodoxas, como atesta o facto de ter sido um dos fundadores do extinto Movimento de Intervenção Radical. Aliás, a consulta das fichas da extinta PIDE/DGS bem poderia atestar que, mesmo antes de 1974, já era pouco fiável, porque apareço ligado, logo em 1969, a um concorrente da oposição, fazendo parte daquele largo espectro antimarcelista da direita coimbrã, onde não havia apenas os “ultras”, mas também alguns monárquicos oposicionistas, alguns dos quais até são descendentes de silenciadas vítimas que passaram pelos cárceres do Estado Novo, como é o caso do subscritor destas linhas. Assumo-me pois como alguém que faz parte daquela direita que não convém à esquerda, mas invoco a linhagem de uma aldeia que tanto protagonizou a Revolta do Grelo como os tumultos de 1936.
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Doeu fundo ter sido violentamente arrancado de uma instituição a que dei o melhor da minha inteligência e do meu coração, em nome de meras considerações de conveniência e oportunidade, onde as tácticas se esqueceram da estratégia e da comunidade viva de alunos e professores, que não havia sido por elas inspirada, conduzindo-a a uma derrota não reconhecida, porque transplantada para outras instituições e para a própria gestão daquilo que se pretende como a instituição das instituições e que conduzirá a Universidade à ruína.
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De que pouco valem os efeitos emergentes, quando o poder pelo poder, de maquiavélicos ou nietzschianos, avassala os jogadores e passam a ser meras insignificâncias as eventuais consequências persecutórias, mesmo que sejam levadas a cabo pelas sargentadas de má memória, contra aqueles que, depois de serem usados no estádio anterior, não se adaptaram às novas circunstâncias.
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Julgo que as instituições não devem depender dos caprichos dos que a comandam, mesmo que estes se assumam como os respectivos fundadores. Até acrescento que o que se passou na Universidade ... foi para mim mais doloroso que o facto de ter sido um dos 18 estudantes expulsos da Universidade de Coimbra em 1975. Porque no PREC havia a clareza da luta de crenças, enquanto na pós-revolução crepuscular dominam os jogos florentinos dos habituais navegantes do situacionismo, à procura de epitáfio.
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Julgo ter percebido o poder infra-estrutural em que me obrigam a mover, o que é amplamente comprovado pela tentativa de assassinato de carácter que alguns agentes da cultura de delação continuam a perpetrar contra a minha pessoa. E neste regime que ajudei a caboucar, como adjunto político de vários governos dos finais da década de setenta e dos princípios dos anos oitenta, desde o sexto provisório aos três presidenciais, não admito ter que pedir certificados de comportamento cívico aos que a ele acederam apenas no depois. No depois do risco assumido por muitos anónimos que, no terreno, permitiram a justa mudança de enquadramento, conforme o processo libertador da democracia pluralista.
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A história e aquilo que outros arquivos discretos continuam a resguardar poderão dar-me, ou não, razão. A minha intuição também pode errar, mas o conhecimento directo que tenho da metodologia utilizada noutros casos faz-me intuir a linha imediata de comando objectivo em todas estas coincidências, sem necessidade de recurso à estafada teoria da conspiração, do compadrio ou do comadrio. É tudo tão simples quanto a vindicta.
Reconheço o incómodo causado pela insignificância do autor de tais interpretações históricas, mas sou obrigado a tomar as devidas atitudes quanto às responsabilidades assumidas.
Agradeço que o Senhor Professor tenha tido a coragem de me interpelar directamente e, em nome dessa frontalidade, solicito a Vossa Excelência que, como ... da ..., faça activar a possibilidade de não mais ter que conviver com a minha insolência. Por isso lhe peço que, à instituição em causa, faça chegar as missivas anexas. Mais prometo que afastarei o seu nome da tal página da Internet, face ao incómodo pessoal que lhe provoquei.
Com os melhores cumprimentos
José Adelino Eufrásio de Campos Maltez
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