O abandono do CDS nos tempos do segundo Freitas
A minha maneira de ser direita liberal sempre se incompatibilizou com os que entenderam o liberalismo de acordo com as concepções restritas do neo-liberalismo e com os que tentaram uma direita de beatério populista. Com efeito, a direita que passou a dominar o CDS era uma direita burguesa demais para os pequenos-burgueses e citadina em excesso para os ruralões. Era uma direita muito esteticamente yuppie e neo-rockeira que não gostava de plebeus do terra a terra.
Saí do partido quando o mesmo passou a ser um mero agente do eixo Lisboa-Cascais, com delegação na Foz do Porto e outras tantas tentativas de imitação nas muitas discotecas da província. Isto é, quando se transformou no partido da geração de O Independente, tudo com óculos de marca exógena, tudo com casaquinhos de executivo de multinacional, tudo com as mesmas vestes da geração banco-burocrática. Quando voltou a cair na armadilha de um grupo que, tendo a má imagem do partido dos ricos, tratou de aderir, através de todas estas opções geracionais, mais estéticas e vivenciais do que políticas, às próprias ideias dos ricos.
A opção, que até foi benéfica em termos de resultados eleitorais, constituiu, para mim, uma flagrante violação daquilo que considerava o cerne da lealdade básica às minhas origens e às minhas concepções do mundo e da vida, marcadas pelo tradicionalismo consensualista português, de raiz monárquica e institucionalista.
Sendo mais libertacionista do que liberalista, continuei a reivindicar aquele conceito tomista de justiça que a não reduz à justiça comutativa do animal de trocas, antes exige a permanência vivificante da justiça distributiva e da justiça social. Neste sentido, tinha que continuar a acentuar os valores da solidariedade e da justiça, na linha dos desenvolvimentos doutrinários de João Paulo II.
Pertenço a uma direita sociológica com alguns laivos justicialistas que não subscreve o entendimento quase marialva do conceito de direito de propriedade. Julgo, aliás, que o nosso proprietarismo vem menos da revolução burguesa do século XIX, do que da revolução alodial do minifundarismo medieval, onde mergulham os factores democráticos da formação de Portugal. Porque adiro a esta concepção do mundo e da vida, tenho de me posicionar contra os actuais defensores da religião secular do mercadismo, protestante demais para as minhas raízes franciscanas e jesuíticas.
E não me bastou que alguns batessem com a mão no peito do pieguismo e do pietismo, porque, mesmo num partido marcado pela axiologia da democracia-cristã tinha que assumir-se uma perspectiva política independente da sacristia e dos muitos beatos que dela eram satélites.
Sendo daquela direita que está muito à esquerda do marialvismo, do pietismo, do mercadismo e do proprietarismo, sempre quis ter as mãos livres para poder votar na força política que fosse mais próxima desta mundivivência. Porque considero que a política tem de ser marcada pela preponderância da ética da convicção sobre a ética da responsabilidade, não sou capaz de ceder aos neo-maquiavelismos e neo-realismos que adoram o bezerro de ouro do utilitarismo e do pragamatismo.
Foi, então, que, exercendo um dos meus direitos fundamentais, que era o de pedir a desfiliação do CDS, invoquei o princípio geral de direito sic rebus, sic stantibus. Não o fiz, contudo, à maneira dos divórcios litigiosos, onde o amor-ódio costuma embrenhar-se em pretextos de faca e alguidar, sejam decisões congressistas ou actos pessoais de ingratidão da liderança mais recente.
Se mantive a minha relação de comunhão institucional com tal entidade, logo concluí que esse amor passou a pertencer a um passado que foi deixando de existir.
Mas não fiquei desiludido da luta política, dado que a mesma me continuou a entusiasmar e desenvolvendo certa sociologia da esperança nesses domínios, apareci como activista do movimento Portugal Plural, um dos fundadores da organização cívica Intervenção Radical e estive presente, desde os caboucos, no projecto de partido Nova Democracia. Sempre tive a limpeza de querer sujar as mãos!
Sentia-me, então, cada vez menos liberal e cada vez mais libertacionista, cada vez mais nacionalista e cada vez menos soberanista, cada vez mais tradicionalista e cada vez menos conservador. Logo, não podia aceitar o maniqueísmo dos que falavam numa fronteira mítica entre capitalismo e socialismo, entre o Estado e a Sociedade e entre Portugal e a Europa.
Porque depois do globalismo que acompanhou o fim da guerra fria e da integração de Portugal no projecto europeu, nem libertar podia ser construir o liberal com o martelo da injustiça nem conservar o que está podia confundir-se com conservar o que deve ser.
Quem não entende que a justiça é o novo nome da igualdade e a continua a reduzir à comutação, esquecendo que a mesma tem também de ser justiça distributiva e justiça social, está a admitir que pode haver liberdade sem igualdade e libertação individual sem solidariedade, o que pode ser de muita outra doutrina, mas não é certamente da minha.
Quero tentar comprometer-me, muito evangelicamente, com a memória do sofrimento, em vez de alinhar como homem de sucesso, e prefiro assumir a condição de pai, em aliança com os filhos, sem esquecer os pais dos meus pais e os filhos dos meus filhos.
Sendo um marginal de direita, se, por um lado, me considero herdeiro daquela tradição monárquica que sempre assumiu o reino anti-absolutista como uma das melhores formas republicanas de governo que até hoje tivemos, mantenho esta postura anti-moderna, tomando partido pela Vendeia contra o terrorismo da Razão dos sucessivos Robespierres com que o jacobinismo nos tem brindado.
Nunca precisei de ser de esquerda para assumir o libertacionismo, o nacionalismo místico, o federalismo descentralizador, o comunalismo e o solidarismo justicialista, apesar de olhar com simpatia certos esforços dos socialistas proudhonianos.
Coincido também com algum legado da democracia-cristã, mas nunca poderia aderir ao confessionalismo dos que esperam a chegada de um partido centrista, aprovado pela Conferência Episcopal Portuguesa ou por resolução do conselho de ministros, dado que persisto em defender a perspectiva laica, de fundo estóico que marca o profundo humanismo ocidental, onde se devem reconciliar o humanismo cristão e o humanismo maçónico.
Subscrevo, aliás, as teses de certos teólogos da libertação, para quem a força da libertação provém da memória do sofrimento, como consciência negativa de liberdade futura e como estimulante para agir, no horizonte desta liberdade, de modo a superar o sofrimento. Uma memória do sofrimento que força a olhar para o “theatrum mundi” não só a partir do ponto de vista dos bem-sucedidos e arrivistas mas também do ponto de vista dos vencidos e das vítimas, para utilizar palavras de Johann Baptist Metz.
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